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A enxurrada que assolou o interior de Santa Maria do Herval há 10 anos
Por Cleiton Zimer
Santa Maria do Herval / Morro Reuter / Dois Irmãos – O domingo do dia 20 de fevereiro de 2011 ficará para sempre marcado na memória dos hervalenses. E agora, nesse sábado, completará 10 anos dessa que é considerada a maior catástrofe de Santa Maria do Herval: a enxurrada.
Ao longo daquela semana havia uma chuva persistente. No sábado, da mesma forma, a precipitação era intensa. No domingo a situação se repetiu, com chuva constante ao longo do dia; mas de tarde, por volta das 17h, enquanto muitos moradores estavam na festa da Comunidade Católica de Padre Eterno Ilges, a água começou a cair torrencialmente e, em questão de duas horas danificou 15 estradas, cinco pontes e matou cerca de 30 mil frangos.
Balneários que ficam ao longo do Rio Cadeia tiveram inúmeros prejuízos. A estrutura do CTG Amigos da Tradição foi arrastada pela correnteza. Pessoas ficaram ilhadas em muitos pontos. Muitos não puderam retornar para casa devido às quedas de barreiras e tiveram que se acomodar na casa de parentes e amigos até o dia seguinte. O retorno às aulas previsto para a segunda-feira teve que ser postergado.
As localidades mais atingidas foram Padre Eterno Baixo e Centro, mas somente houve danos materiais. Já na Reserva Ecológica da Família Lima, em Picada Verão, no Rio Feitoria, sete pessoas desapareceram, das quais somente cinco foram encontradas com vida, resultando em duas vítimas fatais.
A água chegou perto da casa e levou a pinguela
Leoni Wingert, 78 anos, mostra o quanto a água do Rio Cadeia saiu do leito, cerca de 30 metros (FOTO: Cleiton Zimer)
Dona Leoni Wingert, de Padre Eterno Baixo, recorda que já no sábado a chuva era intensa e o rio havia transbordado em alguns pontos. “Estávamos jogando carta na casa de uma amiga. Na hora de voltar não conseguimos ir a pé pela estrada e tivemos que subir em um barranco para passar”, conta, referindo-se ao trecho da ponte próximo ao Mercado Möller.
No domingo foi jogar cartas novamente e, ao ver as nuvens tomando forma, foi para casa. Ainda no trajeto a chuva veio intensa. “Quando eu vi a água já estava no meu joelho. Foi horrível”. Ela foi até o Bar Encosta do Rio e dali a levaram para casa de carro.
Ao chegar em casa viu a água saindo do leito do Rio Cadeia por cerca de 30 metros, chegando perto da sua residência. Uma casinha que fica mais para os fundos, onde guarda as suas ferramentas, já estava dentro d´água. Havia uma pinguela sobre o rio, que foi arrastada pela correnteza. Semanas depois, o local recebeu uma ponte de madeira que se tornou o único acesso aos moradores por meses, pois mais adiante a ponte principal havia caído.
No lugar da pinguela, foi construída uma ponte. Ela se tornou o único acesso dos moradores por meses (FOTO: Cleiton Zimer)
Destruiu o principal acesso a Padre Eterno Baixo
Durante muito tempo os moradores usavam a ponte. Mesmo ela estando caída, subiam por uma escada e depois cavaram parte da terra para que fosse possível subir (FOTO: Arquivo O Diário)
Cerca de dois quilômetros depois a força da correnteza derrubou a ponte Edwino Molling, principal acesso à localidade de Padre Eterno Baixo, deixando os moradores ilhados. Ela só foi reconstruída quatro meses depois, sendo reinaugurada em 23 de junho. Durante todo esse tempo os moradores tiveram que pegar o acesso pela nova ponte de madeira que passa ao lado da casa de Leoni. Entretanto os trabalhadores da indústria local e, até mesmo estudantes da escola, passam a pé por cima da ponte, mesmo parte dela tendo caído.
Na época, testemunhas relataram que instantes antes de cair, um ônibus coletivo passou por cima da ponte.
A ponte foi reconstruída quatro meses depois (FOTO: Cleiton Zimer)
Correnteza levou mesas e cadeiras na Prainha Klaus
Na época, Inácio mostrou o estrago das goleiras destruídas (FOTO: Arquivo O Diário)
Inácio Klaus , 64 anos, proprietário da Prainha Klaus, recorda que no dia da enxurrada havia cerca de 40 pessoas no local, de diferentes cidades. “Estava chovendo e, de repente, a água começou a subir. Foi questão de minutos”.
Klaus conta que nunca havia visto nada parecido. A água arrancou as goleiras do campo de futebol 7, levou mesas, bancos, cadeiras, churrasqueiras. Além disso, arrastou dois pontilhões usados pelos visitantes para fazer a travessia do rio. Ele conta que teve um prejuízo de R$ 5 mil na época.
Inácio mostra a altura que a água atingiu em uma das casinhas da Prainha; ao fundo é possível ver o Rio Cadeia, o que permite ter uma dimensão do quanto que a água subiu (FOTO: Cleiton Zimer)
Arrastou o pedalinho do açude do Balneário Kunzler
Na época, Junior Kunzler mostrou as duas piscinas que foram atingidas pelas águas do rio (FOTO: Arquivo O Diário)
O Balneário Kunzler fica logo ao lado da Prainha. Em alguns minutos a água do Rio Cadeia invadiu duas piscinas. Na parte superior da propriedade, o nível do açude se elevou rapidamente e o pedalinho que estava dentro foi levado, sendo encontrado a 100 metros do local, em cima de uma árvore. Além disso, foram levadas cadeiras, bancos e freezers. Por muito pouco, o ginásio também não foi tomado pela água.
Monique Zahler conta que estava tomando banho no momento. “Estávamos nos preparando para ir na festa do Ilges e de repente a água subiu”. Ainda havia algumas pessoas no momento e tiveram que se abrigar até às 21h, pois ficaram ilhados.
Monique mostra que a água do açude chegou até a pedra (FOTO: Cleiton Zimer)
Árvore ficou em cima de um muro, a seis metros de altura
Egídio conta que uma árvore ficou em cima do muro (à direita), que fica a seis metros de altura no leito normal do Rio Cadeia (FOTO: Cleiton Zimer)
Egídio Dilkin, 55 anos, mora logo em seguida. Ele conta que viu um freezer do Balneário sendo arrastado. “Até brinquei que tinha que ir atrás, nadando, para pegar a cerveja”. Uma árvore ficou em cima de um muro nos fundos da sua casa, que fica a seis metros de altura do leito do rio. Dessa forma, é possível ter uma ideia do quanto o nível da água subiu. Perto do muro havia três árvores grandes; duas foram arrancadas, somente uma restou. “Elas balançavam tanto que parecia ter um trator empurrando elas”, disse.
Egídio Dilkin viu um freezer sendo arrastado pela correnteza (FOTO: Cleiton Zimer)
Galpão onde funcionava o CTG foi levado pelo rio
Só restou o alicerce, o restante foi levado (FOTO: Cleiton Zimer)
Alguns anos após sua fundação e de ter recebido da Prefeitura uma área de terras para a construção da sede própria há algumas semanas, os integrantes do CTG Amigos da Tradição viram a estrutura do galpão que usavam ser levado pela correnteza naquele domingo na Vila Kunst, só sobrando o alicerce. A propriedade é de Nelson Schneider e o galpão alugado para o CTG.
Geovan Ritter, que era patrão na época, conta que tudo o que havia dentro da estrutura foi perdido. “Quando cheguei estava coberto de água, só via o telhado. De repente bateu um galho de uma árvore de eucalipto e vimos tudo caindo e indo embora”.
Mesmo sem lugar para dar continuidade aos eventos, a união dos integrantes ficou ainda mais forte. Na primeira semana de abril começaram a trabalhar e, em dezembro do mesmo ano inauguraram o novo galpão no bairro Amizade, com um espaço ainda mais amplo. “Trabalhamos sábados e domingos”, conta, dizendo que a única mão de obra paga foi a de colocação de cerâmica; o restante, foi tudo feito pelos integrantes e demais voluntários.
Com a união dos integrantes, um galpão foi construído até dezembro de 2011 (FOTO: Cleiton Zimer)
Água saiu mais de 10 metros na Prainha da Amizade
Na época, Fernando Zahler mostrou os destroços na sua propriedade (FOTO: Arquivo O Diário)
Na Prainha da Amizade, no bairro Amizade, a água danificou 13 quiosques, com estrutura elétrica e hidráulica, mesas, cadeiras e churrasqueiras. Quase tudo foi levado. Somente um quiosque e o bar ficaram intactos. Zahler gastou cerca de R$ 10 mil na época somente para limpar o espaço, sem contar o custo para reconstruir tudo novamente. “Foi difícil, mas consegui arrumar tudo de novo”. Ele mostrou que a água saiu cerca de 10 metros do seu leito natural.
Fernando mostra o nível que a água chegou no quiosque mais alto da propriedade (FOTO: Cleiton Zimer)
Ponte do Centro ficou totalmente submersa
A ponte ficou totalmente interditada até o dia seguinte (FOTO: Arquivo O Diário)
A água do Rio Cadeia chegou até a Sociedade Herval
O principal meio de ligação entre o Centro e o interior ficou totalmente submerso. A ponte ficou interditada e só foi liberada em meia pista no dia seguinte, após a avaliação de técnicos. O porão da Sociedade Herval também foi inundado e o veículos tiveram que ser rebocados às pressas. Adiante, no Calçadão, alguns postes de iluminação foram arrancados.
No Centro, porém, não houve muita chuva. Dessa forma os moradores se surpreenderam ao ver a quantidade de água vindo pelo rio. Paulo Lauxen, que na época morava no Morro Closs, conta que não acreditou quando chegou no Centro e viu a cena. “Um amigo me ligou e pediu se eu conhecia o CTG, me falando que ele não existia mais. Eu não entendi o que ele quis dizer, então ele disse para ir no Centro e ver a quantidade de água no rio. Quase não acreditei no que vi”.
Paulo Lauxen (FOTO: Cleiton Zimer)
Em Morro Reuter os moradores ficaram ilhados
Ponte destruída entre Fazenda Padre Eterno e Franckenthal deixou moradores ilhados (FOTO: Arquivo O Diário)
As localidades de Fazenda Padre Eterno e Franckenthal foram atingidas pela força da água. Cinco pontes foram danificadas e os moradores ficaram ilhados. Por vários dias tiveram que fazer um desvio de 30 km para sair das localidades. Gilmar Espich, 55 anos, conta que não chovia quase nada naquela tarde. “Quando chegamos perto da ponte a água passava uns dois metros por cima. Era inacreditável”.
Espich disse que muitos moradores das localidades estavam na festa do Ilges. “Tiveram que ficar na casa de parentes, pois não tinha como voltar”.
Gilmar Espich (FOTO: Cleiton Zimer)
Destruição e duas vítimas fatais na Família Lima
Sítio da Família Lima depois da enxurrada (FOTO: Arquivo O Diário)
O dia estava calmo no Sítio da Família Lima, na Picada Verão, em Dois Irmãos. De acordo com o Tenente Edson Luis Maicá Severo, que comandava o Corpo de Bombeiros de Dois Irmãos, sete jovens tomavam banho entre as cascatas. A água veio de repente. Uma vítima conseguiu se segurar e as outras seis caíram. Cinco foram resgatados ainda na mesma noite e os outros dois jovens desapareceram.
Uma equipe de 40 bombeiros militares e voluntários foi mobilizada em um trabalho incansável. O corpo do rapaz, Breitner Bortoluzzi, 21 anos, foi encontrado no início da tarde daquela segunda-feira, a cerca de três quilômetros do local, fora d’água; ele era universitário em Caxias do Sul. O corpo de Cristina Reis, 20 anos, só foi encontrado no domingo seguinte, a 11 quilômetros do Sítio, próximo à ponte da Vila Becker, dentro d’água; ela era natural de Caxias do Sul.
Maicá se emociona ao lembrar da tragédia e reitera que o trabalho só foi possível graças aos bombeiros militares e voluntários que atuaram no local. Varreduras foram feitas até 15 quilômetros em busca das vítimas, indo madrugada adentro. Depois do corpo da jovem ter sido localizado, Maicá e mais três homens que estiveram na operação foram até Caxias do Sul, acompanhar o enterro de Cristina. “Nosso dever profissional foi feito, mas, naquele momento, éramos humanos, sentindo a dor da perda daquela família”, disse.
Até hoje, a ocorrência da Família Lima é usada para estudos do Corpo de Bombeiros, sendo usada como referência para o preparo das corporações.
“Péssimas recordações”
Hoje o local é denominado Reserva Ecológica Picada Verão. O proprietário Paulo Amaro diz que não gosta de relembrar desse dia. “Deixou péssimas recordações em todos os sentidos. Destruição e tristeza pelas vítimas”, lamenta.
Ele teve prejuízo que girou em torno de R$ 250 mil. “Toda a lateral do rio, quiosques, restaurante, tudo foi destruído. Tivemos muito trabalho para recuperar tudo. E, acima de tudo, sentimos muito pelas vítimas fatais”.