Conecte-se conosco

Colunistas

(DES)HUMANIZADORAS CONVICÇÕES

19/09/2025 - 06h55min

Delegado Felipe Borba

Por Felipe Borba, delegado de polícia e mestre em direito

De tempos em tempos, a humanidade testemunha atos contrários a qualquer sistema moral fundado em nossa dignidade, a ponto de caracterizar tendência ao extermínio de quem, pelas mais diversas convicções, seja considerado diferente e, por isso, indigno. Tragicamente, a intolerância à convicção do outro motiva inclusive impulsos de eliminação.

 Parece natural a formulação de múltiplas convicções, que podem ser de cunho religioso, moral, ideológico, etc. Talvez até precisemos delas para guiar, respaldar e legitimar nossas próprias ações e ideias. Como cantava Cazuza: “ideologia, eu quero uma pra viver!”. Ocorre que as convicções, além de serem elaboradas dentro de incontornáveis limites da nossa condição humana (cognitivo, intelectual, psíquico), derivam de valores circunstanciais, associados ao tempo e ao lugar em que são construídas.

Contrariando estas limitações, porém, surgem tentativas de atribuição de caráter universal e absoluto a algumas ideias, cujos defensores não se satisfazem com a sensação de ter descoberto a “verdade” definitiva e passam a combater não apenas as ideias divergentes, também o outro, julgado incapaz de atingir o mesmo grau de “iluminação”.

 Se a época e o local em que (con)vivemos exercem indiscutível influência sobre certos posicionamentos, como sentimento patriótico, crenças religiosas, ideias políticas e, mais recentemente, sobre Economia e papel do Estado, por que alguns insistem em tentar impor, a qualquer custo, as suas concepções, a sua visão de mundo? E o pior, não pela argumentação, mas pela força.

A filosofia oferece alternativas, lições aptas a nos apontar um rumo melhor.

Lembremos dos ensinamentos de Aristóteles, para quem a virtude está no meio-termo, escapando de excessos e de deficiências. Transpondo para o campo das nossas reflexões, não são virtuosas nem a extrema passividade diante de ideias que consideramos ruins, nem o elevado inconformismo perante juízos aparentemente equivocados ou absurdos. A partir desse postulado, não correremos o risco de assumir a tola posição de quem reduz a complexidade do ser humano à simplicidade de uma convicção sua.

O princípio da dignidade humana sustentado pela filosofia de Kant também parece oportuno, na medida em que nossa racionalidade, autonomia e capacidade moral impedem, ou deveriam impedir, que o outro seja tratado como meio, não como fim em si mesmo. Na prática, nenhum movimento é mais desumanizador do que o emprego de violência contra quem pensa diferente, metodologia que trabalha com a neutralização/anulação de um “semelhante” e tem como finalidade a consagração da supremacia de uma ideia qualquer.

É tempo de refletir sobre nossas convicções, o que certamente propicia um ambiente mais adequado para a convivência e o desenvolvimento de novas posturas. Tolerar para ser tolerado, respeitar para ser respeitado, etc.

É preciso enxergar que a desumanização do outro pressupõe a nossa própria desumanização. Quando deixo de reconhecer a relatividade e mesmo a falibilidade de minhas convicções, permitindo que a arrogância intelectual e a soberba ideológica se traduzam em atos de hostilidade a quem não se rende às minhas posições, eu renego minha própria condição humana.

Nossa coleção de convicções não deve desestimular o sempre necessário aprofundamento das reflexões. Pode ser confortável, para os mais fervorosos e apaixonados por suas concepções, atacar os “diferentes”, agredir em vez de investir no inquietante caminho da reflexão e da humilde  admissão da dúvida, sintetizada na famosa frase atribuída a Sócrates: “só sei que nada sei”.

Como dizia o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, “as convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras”. Para nosso lamento, muito mais do que um perigo à verdade, as convicções têm se revelado um perigo para a própria humanidade. 

Nossa humanidade resiste até o ponto em que nós próprios a negamos; afinal, ela é só mais uma de nossas ideias. Disso podemos estar convictos.

Conteúdo EXCLUSIVO para assinantes

Faça sua assinatura digital e tenha acesso ilimitado ao site.