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Coronavírus: “Se tudo correr bem, teremos uma medicação antes que a epidemia termine”, diz médico gaúcho
Rio Grande do Sul – Formado na UFPel e com residência na Santa Casa, André Kalil atua há 20 anos na Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos. Ele tem concedido entrevistas para a imprensa de todo o mundo nos últimos dias. “Este homem está extremamente popular nos últimos dias!”, escreveu o hospital Nebraska Medicine na legenda de uma imagem de André Kalil, 53 anos, publicada na página da instituição no Facebook. De médico pouco conhecido nas planícies dos Estados Unidos, o infectologista tornou-se uma das autoridades científicas mais requisitadas em meio ao surto do coronavírus.
Natural de Bagé, na campanha gaúcha, Kalil lidera o ensaio clínico considerado mais promissor para a cura do covid-19. Financiado pelo governo norte-americano por meio do National Institutes of Health (Institutos Nacionais de Saúde), o pesquisador deu início aos testes na semana passada em um paciente dos Estados Unidos.
Você conhece o grupo de bike “Pedalentos” de Santa Maria do Herval?
Tripulante do cruzeiro Diamond Princess, o contaminado está recebendo dose intravenosa diária da droga remdesivir durante meia hora. Ele é o primeiro de um grupo de 400 pessoas infectadas pelo vírus que irão participar da pesquisa. Pelo protocolo, metade terá acesso ao remédio verdadeiro, e outra, a um placebo. Nem mesmo Kalil saberá quem receberá qual. Pelas previsões mais otimistas, o médico prevê encontrar a “cura” ainda durante a epidemia. Especialista em doenças contagiosas, formou-se na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e concluiu a residência na Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre. Depois, fez outras duas residências, na Universidade de Miami, e no Massachusetts General Hospital, em Boston. Há 20 anos, atua no Nebraska Medicine.
O estudo estava em andamento antes da epidemia?
Há algumas semanas, agilizamos o processo. Aprendemos muito com o ebola, em 2014. Houve pânico e dificuldade de saber o que se podia fazer em uma epidemia. Mais para o final, descobrimos uma medicação, aplicada na África. Mas demorou muito tempo. O estudo terminou porque a epidemia terminou rapidamente, mas aprendemos ser possível fazer um estudo sofisticado de uma epidemia. Já existem duas medicações para ebola que têm efeito muito importante de benefício aos pacientes. Estamos trazendo para a do covid-19 o que aprendemos com as epidemias do ebola em um ensaio clínico semelhante. Minha esperança é trazer medicações novas de maneira ainda mais rápida do que aconteceu durante as crises do ebola. O ensaio clínico começou na semana passada, quando colocamos o primeiro paciente. É um marco na história americana, conseguir, em poucas semanas, criar um protocolo de pesquisa, aprová-lo dentro de uma instituição federal, revisá-lo com o comitê de ética e incluir o primeiro paciente. Normalmente, esses estudos levam meses e até anos. “Minha esperança é trazer medicações novas de maneira ainda mais rápida do que aconteceu durante as crises do ebola”, afirma ANDRÉ KALIL Médico infectologista.
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Esse paciente estava no Diamond Princess, cruzeiro atracado no Japão?
Tivemos 15 pacientes do cruzeiro. Temos a unidade nacional de quarentena, um prédio específico para pacientes que não estão doentes, mas que precisam de isolamento. Três deles precisaram de transferência para a unidade de biocontenção porque estavam mais graves, e um deles preencheu os critérios de inclusão no ensaio clínico.
O que se espera desse medicamento?
É um antiviral com atividade de inibir a replicação do vírus. Como temos testes in vitro (em laboratório) e em animais mostrando que essa medicação inibe o vírus, chegamos à conclusão que há a possibilidade de beneficiar pessoas. Iremos avaliar clinicamente as pessoas que participam do estudo. São pacientes com pneumonia, em situação mais avançada de infecção. Metade recebe o placebo, e metade, a medicação. É um estudo randomizado duplo-cego. Ninguém sabe o que o paciente está recebendo. Iremos tratar todos os pacientes ao mesmo tempo, dando o suporte necessário – hidratação, medicação para febre, tosse, etc. O objetivo é que remdesivir prove que os pacientes têm uma resolução dos sintomas mais rapidamente do que aqueles que receberam o placebo. Esperamos ter um paciente com menos febre, menos tosse, menos dor de cabeça, menos falta de ar, saindo do hospital e tendo uma vida normal. Iremos comparar os dois grupos. A hipótese é que a medicação reverta o quadro mais rapidamente, e os pacientes sobrevivam. Temos um processo científico para mensurar isso, um escore medindo diariamente os sintomas clínicos. No 15º dia de tratamento de cada paciente, avaliaremos como está cada um, comparando os dois grupos para saber qual teve uma resolução mais rápida. É um estudo bastante pragmático.
Todos os pacientes serão americanos?
Trabalhamos para que 50 centros hospitalares dos Estados Unidos participem. O objetivo é oferecer esse ensaio clínico para o maior número de pessoas doentes que tenham enfermidade mais grave. Também temos a ideia de oferecer para fora dos Estados Unidos. Dessa maneira, quando um paciente grave preencha os critérios do estudo, ele poderá ser incluído rapidamente. Nas infecções, quanto antes se inicia o tratamento, maior a possibilidade de erradicar a infecção. A ideia é ter esse ensaio clínico pronto para ser ativado em vários lugares. Assim, a pesquisa pode ser feita de maneira mais rápida e efetiva. Estimamos 400 pacientes, mas é possível que, se a medicação tiver efeito positivo rápido, tenhamos uma ideia com cem, 200 pessoas.
Qual o tempo estimado para os resultados?
O estudo está planejado para três anos, mas não iremos esperar três anos para terminá-lo. Pode ser feito em poucos meses, dependendo de quantos pacientes progredirem para a doença. Ainda estamos em uma situação muito fluida, difícil de prever o que acontecerá, mas o estudo está planejado para ser muito rápido. Em três anos, esperamos testar várias medicações. No momento em que descobrirmos que a primeira está funcionando, iremos testar a segunda, depois a terceira e a quarta. Temos a esperança de apresentar várias terapias novas e de, em meses ou um ano, chegar à primeira medicação. Tudo dependerá de como a epidemia irá proceder.
Depois de descoberta a cura, em quanto tempo o remédio poderá ser distribuído?
Neste momento, o passo mais importante é descobrir o que funciona e o que não funciona. A segunda parte será a produção e comercialização. Não posso dar nenhuma informação sobre isso porque depende da companhia que fatura a medicação. Meu trabalho é estritamente de conduzir o estudo científico, mas a companhia está trabalhando com a possibilidade de ofertar essa droga quando o estudo tiver resultado. A velocidade para que entre no mercado também dependerá do sistema de regulamentação de cada país, da agilidade de cada governo.
Por que o remdesivir?
É uma droga que tem sido testada em vários vírus, não uma droga descoberta ontem. Ela tem efeitos antivirais significantes em vários tipos de vírus. Tem sido testada em ebola, sars (síndrome respiratória aguda grave) e mers (síndrome respiratória do Oriente Médio). Várias medicações têm atividades antivirais importantes in vitro e em animais, mas não há como traduzir 100% para dá-las a pessoas, que têm complexidade biológica diferente. Por isso, é essencial que se teste em estudo como esse. Se assumirmos que qualquer medicação funciona em humanos, daremos tudo que é droga para todo mundo. Isso é um perigo, porque causa danos às pessoas. Só há um maneira de saber se a droga funciona, que é ter um grupo que a recebe e outro que não. Se tudo correr bem, teremos uma medicação nova antes que a epidemia termine. “Meu objetivo é não causar expectativa falsa, nem para cima, nem para baixo, mas a adequada”, ANDRÉ KALIL Médico infectologista.
Como o medicamento é administrado?
É uma dose diária pela veia, por 30 minutos, durante 10 dias. A ideia é que diminua a replicação viral, os sintomas, e o paciente melhore rapidamente. A medicação necessita que o paciente esteja no hospital e com pneumonia. Focamos nos pacientes mais graves, porque não há necessidade de dar a medicação para quem irá melhorar de qualquer maneira. É uma medicação relativamente nova, que não foi usada em condições humanas. Monitoramos os pacientes todos os dias não apenas para saber se estamos tendo benefícios, mas para garantir que não estamos tendo malefícios.
Há muita expectativa em cima do estudo. O senhor se sente pressionado?
Faz parte do meu trabalho trazer uma comunicação clara, verídica e balanceada. Tenho de levar uma mensagem importante, mas na medida certa. Meu objetivo é não causar expectativa falsa, nem para cima, nem para baixo, mas a adequada. Estamos trabalhando duro com a possibilidade de trazer uma medicação nova. Todo mundo tem de entender que ciência é extremamente importante numa situação difícil como essa. Sem as pessoas entenderam como a ciência é feita, não conseguiremos avançar na medicina. Há uma tensão geral, mas sou uma pessoa muito calma.
Há motivo para pânico?
Não, nunca deve haver motivo para pânico. O pânico só piora a situação. Em epidemias, pode-se cair no descontrole, porque as pessoas não sabem o que fazer. Todos nós, profissionais ou leigos, não podemos entrar em pânico, mesmo que a situação se agrave.
* Com informações de Gaúcha ZH.