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Erro médico, demora e revolta: morador de Dois Irmãos tem fragmento de pinça cirúrgica esquecido na coluna e enfrenta drama hospitalar

Filha denuncia descaso e cobra providências do poder público após internações marcadas por dor, omissão e estrutura precária em hospital de Canoas, referência para pacientes de Dois Irmãos
O tempo, no relógio, é o mesmo para todos. Mas, para quem está deitado numa maca hospitalar, com dor, sofrendo, um minuto é uma hora; um dia, é um mês; e meses são anos. O que no papel pode parecer “dentro do cronograma” não acalenta a dor dos pacientes – que contribuem uma vida inteira para, quando precisam, não ter. E é isso que está acontecendo com o colapso na saúde do Rio Grande do Sul.
Exemplo disso é Valdori Hahn, de 65 anos, morador de Dois Irmãos e que trabalhou por décadas na construção civil. Em outubro de 2024, ele começou a sentir fortes dores na região lombossacra e buscou atendimento na emergência do Hospital São José, onde permaneceu internado por cerca de 20 dias. Após uma breve melhora e retorno para casa, o quadro voltou a se agravar, obrigando nova internação no mesmo hospital. As dores eram incontroláveis e a medicação com morfina era contínua. A família, preocupada com a falta de evolução no diagnóstico, pagou por uma ressonância magnética fora do SUS e buscou avaliação de um neurocirurgião conhecido.
Foi este profissional que recomendou uma cirurgia de descompressão medular, com uso de próteses para estabilizar a coluna — já comprometida pelos anos de trabalho pesado. Diante da urgência, a família judicializou o procedimento. Porém, antes da decisão da Justiça, o paciente foi, segundo relato da filha Janaina Hahn, retirado do sistema estadual de regulação (GERINT), após avaliação médica que considerou, sem consulta à família, que ele não necessitava de cirurgia. A decisão atrasou o processo, já que a exclusão do GERINT não foi percebida a tempo pelo Hospital São José. Após nova análise, Valdori foi reinserido no sistema e, com ordem judicial, transferido em 31 de dezembro de 2024 para o Hospital Nossa Senhora das Graças, em Canoas.
A partir daí, o que deveria ser o início da solução tornou-se o agravamento do problema.
Desinformação e ausência de acompanhamento
Segundo Janaina, os familiares se revezavam no hospital ou pagavam cuidadoras para acompanhar Valdori, com gastos de até R$ 320 por dia. Ainda assim, passaram-se cerca de 15 dias sem que a cirurgia fosse realizada. A cada nova cobrança judicial, o Estado se movimentava para evitar o pagamento da cirurgia por médico particular. No dia 28 de janeiro de 2025, Valdori foi operado — sem que qualquer familiar fosse previamente informado. A filha afirma que só soube do procedimento por acaso, ao ligar para o pai naquele dia. Após a cirurgia, passou quatro horas na porta do bloco cirúrgico sem receber informações da equipe médica.
Outro ponto grave denunciado por Janaina é a troca do cirurgião, sem aviso prévio. O procedimento foi conduzido por um médico diferente do inicialmente informado. A alta hospitalar veio em 31 de janeiro, sem retorno programado ou acompanhamento pós-operatório. O paciente seguiu com fisioterapia em Dois Irmãos.
Infecção e descoberta de corpo estranho
Em maio, Valdori voltou a se queixar de dores. No dia 18, as queixas se intensificaram e surgiram sinais de infecção na região do quadril. Ele foi novamente internado no Hospital São José, onde o caso foi avaliado e encaminhado, no dia 20, de volta ao Nossa Senhora das Graças, com suspeita de abcesso na região da cintura. “Mas passaram-se mais sete dias sem qualquer procedimento”, relata Janaina.
A indignação aumentou quando, diante do agravamento do quadro, a filha questionou a gestão municipal sobre as condições do hospital de referência estadual. “O discurso era sempre o mesmo: esse é o hospital de referência de Dois Irmãos. Um hospital em ruínas, sem lençol, sem higiene, sem avaliação adequada”, denuncia. Segundo ela, Valdori ficou uma semana em uma maca com colchão fino, sem banho, e com seus pertences pessoais furtados.
Após postagens nas redes sociais e denúncias em ouvidorias, o quadro começou a mudar. Ontem, dia 29 de maio, ele finalmente passou por novo procedimento, desta vez com a equipe da PUC. A cirurgia durou horas. Foram drenados cerca de 600 ml de líquidos, removidos fragmentos ósseos e, surpreendentemente, retirado um pedaço de pinça cirúrgica deixado na coluna desde a operação anterior. O relatório também revelou que já havia um processo infeccioso instalado no local da cirurgia desde janeiro, não tratado adequadamente nem comunicado à família.
Valdori está na UTI.
Respostas do Hospital São José e da Secretaria de Saúde
Procurado pela reportagem, o diretor técnico do Hospital São José (HSJ), médico Thiago Serafim, respondeu a uma série de questionamentos sobre o caso. Ele afirmou que a atuação da unidade foi ágil e conforme os protocolos estabelecidos pelo sistema público de saúde:
“O paciente deu entrada em nossa emergência no dia 18/05 e, em menos de 48 horas, em 20/05, já estava com a transferência autorizada para o Hospital Nossa Senhora das Graças, referência regional em neurocirurgia. Ressaltamos que a indicação de avaliação neurocirúrgica foi precoce, sendo solicitada e aprovada rapidamente dentro dos fluxos pactuados com a Central de Regulação Estadual. Exames complementares foram realizados conforme o quadro clínico, e a equipe atuou com agilidade para garantir acesso à alta complexidade.”
Sobre a questão envolvendo a retirada do paciente do sistema GERINT e a ausência de comunicação com a família, Serafim afirmou:
“O paciente possuía vínculo prévio com o Hospital Nossa Senhora das Graças, onde havia sido submetido recentemente a procedimento neurocirúrgico. Por esse motivo, e considerando os achados da tomografia realizada em nossa unidade de emergência, a equipe médica realizou contato direto com o serviço neurocirúrgico responsável. Dessa forma, o caso não chegou a ser inserido no sistema GERINT, pois a transferência foi viabilizada de forma direta e célere. Destaco que transferências via GERINT, especialmente para a região de Canoas, costumam demandar entre duas a quatro semanas. Neste caso, o encaminhamento foi efetivado em 48 horas, graças ao empenho e à articulação da equipe.”
Questionado se houve algum acompanhamento posterior ao encaminhamento de Valdori ao hospital de Canoas, Serafim explicou que essa responsabilidade deixa de ser da instituição de origem:
“Após a efetivação da transferência e internação do paciente em outra instituição hospitalar, o acompanhamento clínico passa a ser integralmente de responsabilidade do hospital receptor. Por questões éticas e legais, o Hospital São José não possui prerrogativa de interferência ou acesso à condução assistencial em outros hospitais.”
Em relação às críticas sobre as condições do Hospital Nossa Senhora das Graças, Serafim declarou:
“O Hospital Nossa Senhora das Graças é a referência oficialmente pactuada pelo Estado para os casos de neurocirurgia de alta complexidade da nossa região, incluindo AVCs. Entendemos que, como muitos hospitais de grande porte, enfrenta desafios estruturais e operacionais. No entanto, em todas as ocasiões em que acionamos essa unidade, o atendimento foi prestado de forma diligente. Ressaltamos que a definição da rede de referências é uma atribuição da gestão estadual, à qual estamos vinculados.”
Por fim, ao ser indagado sobre a presença de material cirúrgico quebrado na coluna do paciente e possível infecção não tratada, o diretor técnico respondeu:
“Até o momento, o Hospital São José não foi notificado oficialmente acerca de intercorrências relacionadas à presença de material cirúrgico fraturado no referido paciente. Tais informações, caso confirmadas, são de competência da unidade hospitalar onde o procedimento foi realizado. Seguimos à disposição para colaborar com qualquer apuração formal que venha a ser conduzida pelos órgãos competentes.”
Já o secretário municipal de Saúde, Nilton Tavares, destacou que a Secretaria tem como compromisso prestar toda a assistência possível aos cidadãos:
“Nossa Secretaria, por meio de seus dedicados servidores, tem como princípio realizar o máximo por cada paciente ou usuário que necessita de seus serviços. É o caso do senhor Valdori Hahn, que foi internado no Hospital São José e, após diagnóstico, transferido para a referência neurológica do SUS pactuada pelo Estado para o município de Dois Irmãos — no caso, o Hospital Nossa Senhora das Graças, em Canoas (de forma exclusiva).”
Segundo Tavares, durante o período de internação, a equipe manteve contato frequente com a instituição hospitalar responsável, respeitando os limites da legislação:
“Durante o período de internação, foram realizados contatos diários para averiguação do tratamento e acompanhamento do quadro clínico do paciente, ressaltando-se que as restrições impostas pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) limitam diversas condutas por parte da administração pública.”
Ele também afirmou que a gestão municipal não tem controle sobre as decisões médicas ou a estrutura do hospital de referência:
“É importante esclarecer que não temos qualquer ingerência sobre a instituição prestadora dos serviços, cabendo-nos apenas relatar, em reuniões de gestão com o Estado, toda e qualquer demanda ou alteração relacionada à assistência prestada.”
Tavares finalizou enfatizando os investimentos feitos em saúde pelo município:
“Nosso município investe de forma significativa na saúde de seus cidadãos, superando em muitos aspectos as obrigações legais estabelecidas.”
Denúncia e busca por responsabilização
Janaina Hahn agora quer responsabilizar judicialmente a equipe que realizou a cirurgia de janeiro. Ela aponta erros graves, como a ausência de assinatura de consentimento informado, omissão de informações pós-operatórias e a negligência quanto ao processo infeccioso e ao fragmento deixado na coluna do pai. Uma enfermeira, segundo Janaina, confirmou informalmente que se lembra do caso e reconheceu falhas do médico anterior, inclusive a falta de coleta de assinatura da família.
A filha finaliza: “os médicos estão numa guerra, tentando salvar vidas com o mínimo de insumos e segurança.”
E enfatiza: “Os políticos precisam agir e não apenas empurrar os pacientes para longe e lavar as mãos. O que estão fazendo com a saúde das pessoas é inaceitável.”
Descreveu ainda que “A emergência (de Canoas) fede, cheira podre. Algo que não tenho como te descrever. Só vindo aqui mesmo.”
COLAPSO NA SAÚDE:
Referência para 157 municípios e responsável por atender cerca de 2 milhões de pessoas, a cidade de Canoas enfrenta um colapso em seu sistema de saúde. Em 20 de maio de 2025, o município registrava ocupação hospitalar de 300%, com relatos de superlotação, falta de insumos básicos e escalas médicas comprometidas. Atualmente, apenas dois hospitais seguem ativos: o Universitário e o Nossa Senhora das Graças — este último, referência exclusiva para casos de neurocirurgia de alta complexidade na região, incluindo os pacientes de Dois Irmãos.
Além da sobrecarga, o Hospital de Pronto Socorro (HPS), importante estrutura da rede, permanece fechado desde as enchentes de 2024 e só deve reabrir em 2026. Com aporte municipal de R$ 19 milhões por mês, somado a R$ 13 milhões repassados pelos governos estadual e federal, Canoas afirma que os recursos são insuficientes. A prefeitura já pediu apoio da Secretaria Estadual da Saúde e do Ministério da Saúde e estuda a redução de atendimentos por falta de capacidade.
*EM TEMPO: A reportagem contatou o Hospital Nossa Senhora das Graças mas, até a publicação desta reportagem, não foi dado retorno.