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“A guerra é pior que o inferno. Pois no inferno não existem inocentes”; Morador da Serra atuou no front da guerra na Ucrânia

29/06/2025 - 09h13min

Atualizada em 29/06/2025 - 09h28min

Vitor Pellenz esteve de frente com os russos em uma das regiões mais afetadas pela guerra. Ele voltou ao Brasil após ser ferido em combate (FOTOS: arquivos pessoais)

Natural de Caxias do Sul, o jovem Vitor Pellenz, de 22 anos, decidiu fazer o que poucos brasileiros fizeram: alistar-se como combatente na linha de frente da guerra entre Ucrânia e Rússia. Entre outubro e novembro de 2023, ele viveu o cotidiano de trincheiras, bombardeios e perdas humanas em Kherson, uma das regiões mais atacadas no conflito. Vitor foi ferido em combate e, após meses de recuperação, voltou ao Brasil. Em entrevista ao Jornal O Diário, ele detalhou a experiência no front.

O conflito

A guerra na Ucrânia começou em fevereiro de 2022, quando a Rússia lançou uma invasão em grande escala ao país vizinho, alegando interesses estratégicos e de segurança. A ofensiva russa foi amplamente condenada por governos ocidentais, que acusam Moscou de violar a soberania ucraniana. Desde então, o conflito já deixou dezenas de milhares de mortos e milhões de deslocados, além de devastar cidades inteiras. Em 2025, a linha de frente permanece concentrada no leste e no sul da Ucrânia, incluindo regiões como Donetsk, Luhansk e Kherson.

Kherson, onde Vitor atuou, foi uma das primeiras grandes cidades ocupadas pelos russos no início da guerra e, posteriormente, reconquistada pelas forças ucranianas. Desde então, a área segue sob ataques constantes.

A decisão de partir

Ele foi para a Ucrânia em setembro, chegando em Kherson somente em outubro.  “Já tinha me alistado em 2022 diversas vezes, mas não tinha tido resposta. Então arrisquei e fui pra lá só com a passagem de ida e sem contar a ninguém. Ninguém sabia que eu estava indo. Só avisei depois que já tinha assinado o contrato com o exército.”

Segundo Vitor, na época havia poucos brasileiros no front:

“Eu era o segundo mais novo. Fiquei na região de Kherson por três meses até ser ferido. Depois, passei 40 dias no hospital até receber alta.”

A rotina no front

“No dia a dia, lá a gente tinha que ficar preso no batalhão, na ‘safe house’, que é a casa segura. Só no domingo a gente podia ir ao mercado comprar comida. Durante a semana, de segunda a sábado, era treinamento ou cuidar das trincheiras defensivas na retaguarda. Ou então, éramos enviados para as trincheiras de frente, que foi onde eu fui ferido.”

Eles estavam a cerca de 10 quilômetros de distância das tropas russas – separados somente pelo Rio Dniepre. O ambiente era constantemente ameaçado:

“Todo santo dia caía artilharia no terreno da casa. Tinha casa, plantação, casa, plantação. Era normal cair na plantação. Teve dia que caiu a 50 metros da nossa casa e quebrou a janela do nosso quarto com estilhaço.”

O relato de Vitor inclui episódios trágicos ocorridos próximos:

“Mataram uma mulher no campo de futebol perto de casa. Mataram um avô e uma mãe, e o bebê de três meses foi internado em estado grave na rua da nossa casa, a 100 metros de onde a gente morava.”

Vitor e outros brasileiros.

A missão que mudou sua vida

“Na missão, saímos de noite, fizemos a travessia de barco para retirar uma equipe que estava lá. Ficaríamos alguns dias até outra equipe vir nos retirar. Sofremos a primeira baixa: um ucraniano morreu nos meus braços, foi morto por um drone. Depois, seguimos para a posição e fomos atacados incansavelmente. Foram 17 horas de fogo intenso, com artilharia, drones, gás lacrimogêneo ou cloro, tanque atirando tiro direto. Teve um disparo de tanque que ricocheteou no teto da nossa posição”, contou ele, relatando que escutavam o barulho do motor do tanque andando perto deles.

O momento mais crítico foi durante a tentativa de retirada:

“Eu, outro brasileiro e dois ucranianos fomos os últimos a tentar embarcar. O barco parou no lugar errado. Na tentativa de chegar até ele, fomos feridos. Perdemos o comandante também. Ficamos sem comunicação. Os outros brasileiros acharam que a gente tinha morrido.”

Durante a espera, a situação se agravou:

“Sofremos de novo artilharia, drone, até ataque de jato. O drone kamikaze explodiu nossa posição e tivemos que sair correndo no pântano, esperando resgate por mais 5 horas. Mais tarde, um barco das forças especiais conseguiu nos resgatar.”

Ele foi ferido no dia 29 de novembro. Ficou internado e recebeu liberação médica somente em janeiro de 2024 e, então, retornou ao Brasil – recebeu a passagem dos americanos para retornar. Antes de voltar, ganhou uma faca do comandante, com o logotipo da unidade, reconhecendo sua bravura na missão.

Registro do dia em que foi ferido – horas antes do ataque dos russos.

O que o motivou

“Primeiro ponto: o contrato é com as forças armadas da Ucrânia. Recebemos o mesmo salário que um ucraniano, seguimos as mesmas leis, somos soldados ucranianos. O que me motivou foi que eles mostraram que queriam ser livres, lutaram mesmo, não se entregaram. Até junho de 2022, antes de receberem ajuda internacional, eles seguraram o ataque russo praticamente sozinhos.”

Além da admiração pelo povo ucraniano, havia um sonho pessoal:

“O sonho que eu tinha de ser militar, que no Brasil não deu certo, porque fui dispensado. Então fui pra lá, realizei meu sonho e ajudei quem merecia ser ajudado.”

Antes e depois da guerra

Antes de partir, Vitor estava desempregado:

“Eu trabalhava em escritório de contabilidade, mas já estava desempregado quando fui.”

Ele voltou ao Brasil em janeiro de 2024, ficando 10 meses com um fixador na perna, onde foi ferido. Agora, segue morando em Caxias do Sul:

“Estou sem emprego no momento. Aqui no Brasil é difícil seguir carreira militar porque é por concurso e eu já estou na idade limite. Sinceramente, não sei o que vou fazer no futuro.”

Os laços com os companheiros de combate

“Mantenho contato com todos os brasileiros que serviram comigo. Um deles acabou morrendo recentemente, outro foi ferido. O cabo Hunter, que estava comigo na missão, foi ferido por granada cinco vezes e mesmo assim fez procedimento médico em mim e em mais oito soldados, mesmo estando ferido. Ele me carregou nas costas enquanto eu estava ferido. Ele ia receber várias medalhas, mas saiu igual eu, antes de pegar os prêmios.”

Voltar à Ucrânia?

“Posso voltar pra lá para receber as honrarias, mas se eu vou, só Deus sabe. Querer, eu quero, mas envolve muitas pessoas próximas que não querem que eu vá. Todo dia eu penso em voltar, mas não quero sentir a saudade que eu já senti.”

Recado para os brasileiros

“Honrem aqueles que deram a vida para que tu pudesse viver a sua em liberdade. Si vis pacem para bellum: ‘Se queres paz, esteja preparado para a guerra’. Muitas vezes comparam a guerra ao inferno, mas eu discordo… A guerra é pior. Pois no inferno não existem inocentes.”

 

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