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Incêndio na Boate Kiss completa 10 anos de marcas na vida dos gaúchos

27/01/2023 - 11h21min

10 ANOS DEPOIS

MAIOR TRAGÉDIA DA HISTÓRIA DO RS DEIXOU 242 MORTOS

GUILHERME SPERAFICO

HERMES REICH

Nesta sexta-feira completam-se 10 anos que o Rio Grande do Sul registrou a sua história mais triste. Em 27 de janeiro de 2013, 242 pessoas morreram e mais de 600 ficaram feridas no incêndio à Boate Kiss, em Santa Maria, na Região Central do Estado.

O drama começou por volta de 3h, quando um vocalista da banda Gurizada Fandangueira acendeu um artefato pirotécnico dentro da casa noturna. A espuma do teto foi atingida por fagulhas e começou a queimar.

A fumaça tóxica fazia as pessoas desmaiarem em segundos. O local estava superlotado, não tinha equipamentos para combater o fogo, nem saídas de emergência suficientes.

Além da dor e da lacuna deixada na vida de todos os familiares que perderam seus entes queridos, a tragédia deixou marcas na vida de todos os gaúchos. Nesta página da série de reportagens “30 Anos, 30 Histórias”, trazemos os impactos na vida de moradores da região que acompanharam de perto aqueles dias, assim como as modificações nas leis de prevenção contra incêndios, ampliadas e tornadas mais rigorosas depois do ocorrido.

 

Atualmente, Maicá é secretário municipal em Dois Irmãos

Em 2013, o então comandante do Corpo de Bombeiros embarcou para ajudar em Santa Maria

 

SECRETÁRIO DE DOIS IRMÃOS ATUOU COMO BOMBEIRO

Uma noite que deveria ser de diversão aos jovens, muitos deles universitários, se transformou em desgraça. O secretário de Desenvolvimento Econômico de Dois Irmãos, Edson Maicá Severo, participou do atendimento à ocorrência.

Na época, ele atuava como especialista em resgate terrestre e em altura. Foi instrutor na escola de Bombeiros e também ajudava na formação de novos soldados e no aperfeiçoamento da tropa. “Fui acionado pelo coronel Vitor Hugo Konarzewski, que havia sido chamado pelo comando da corporação. Naquele tempo, eu comandava a região e era especialista em incêndio”, recorda.

Maicá diz que, a pedido do tenente Parker, de Novo Hamburgo, teve de embarcar em um avião no Aeroporto Salgado Filho, com destino a Santa Maria.

EXPERIÊNCIAS

À reportagem do Diário, Maicá contou sua experiência na tragédia.

Diário – Qual foi sua primeira impressão quando chegou lá?

MaicáChegamos no final da manhã e a parte de resgate já havia sido concluída. As pessoas estavam perplexas, não acreditando no que estava acontecendo. Toda a área estava isolada. Adentramos no local e havia equipes do IGP. Eu e o coronel Vítor Hugo começamos a fazer algumas fotos e analisar o caminho seguido pelas chamas, para entender o que aconteceu. Conseguimos, ainda dentro do local, conversar com o produtor musical da banda, que nos relatou como tudo começou. Ele confirmou a versão do uso do Sputnik – jato de fogos em formato árvore de natal -, que atingiu o teto.

D – Qual seu papel em Santa Maria?

M – O responsável por analisar e dizer como tudo aconteceu é o IGP. Nós estávamos numa missão de analisar como o fogo se comportou naquele ambiente, para melhor preparar nossas equipes futuramente. O coronel Vítor Hugo ficou encarregado do IPM (Inquérito Policial Militar). Todo o material colhido naquele dia foi peça desse IPM.

D – Quantos dias ficou em Santa Maria?

M – Não havia mais nada em relação a buscas ou resgate, nosso papel foi outro. Voltamos na terça, mas retornamos a Santa Maria novamente no outro dia e ficamos até final daquela semana. Eu não voltei mais, tinha minhas funções como comandante local e outros oficiais de Santa Maria foram nomeados membros do IPM, junto com o coronel Vítor Hugo.

D – Qual era o ‘clima’ entre quem trabalhava?

M – Fomos para o ginásio de esportes para onde as vítimas eram levadas. Muitas pessoas esperavam para entrar e fazer a identificação. Foi uma cena de filme de guerra. Jamais imaginei que presenciaria uma tragédia daquela proporção. Os corpos eram perfilados um ao lado do outro e, assim que identificados, eram cobertos com lona preta. Nesse momento não acontecem conversas paralelas, a ficha vai cair somente depois. O momento é de muita dor e sofrimento.

D – Como isso impactou o senhor?

M – Minha profissão fez com que vivenciasse muitas coisas. Ajudei muitas pessoas em momentos de tragédia, perdi algumas vidas nas minhas mãos e sempre procurei ser um profissional durante todos esses momentos, mas não tem como você passar por tudo isso e não ser impactado. Quando retornei para casa, reuni a família, choramos, nos abraçamos, rezamos e pedimos a Deus que desse força e conforto a todos os familiares.

 

“Sempre procurei ser um profissional durante todos esses momentos, mas não tem como você passar por tudo isso e não ser impactado”

Trajetória

Com experiência de 30 anos no Corpo de Bombeiros (CBMRS), Maicá aposentou-se na Defesa Civil Estadual e, no final de 2018 recebeu o convite da então prefeita Tânia da Silva e do vice Jerri Meneghetti, que atualmente é o prefeito de Dois Irmãos, para assumir a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, na qual está à frente até hoje. Ele agradeceu a todos que cooperaram durante a sua caminhada e encerra com um versículo bíblico: “Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé” – 2 Timóteo 4:7.

 

Lei Kiss endureceu as regras de prevenção

O incêndio provocou mudanças na legislação do Rio Grande do Sul. Ainda naquele ano, em dezembro, a Assembleia Legislativa aprovou a chamada “Lei Kiss”, com normas de prevenção e combate a incêndios, vigentes a todos os imóveis não considerados como unifamiliares exclusivamente residenciais.

O comandante dos quartéis de Dois Irmãos e Ivoti do Corpo de Bombeiros Militar, 1º tenente Matos, e a soldado Caroline, explicam que as mudanças fortaleceram a prevenção de incêndios nos estabelecimentos. “A Lei Kiss, como ficou conhecida, embasou várias resoluções técnicas e fez especificações. São vários decretos, cada um norteando diversas situações. São previstas saídas de emergência, larguras de portas, entre vários itens”, destaca Caroline.

Matos explica que a instituição realiza operações de fiscalização em casas noturnas. Segundo ele, quando são solicitadas mudanças em determinados itens, não há prazo para resolução. “Se algo não está conforme, o local é interditado e fica fechado até que tudo esteja dentro do que foi determinado”, detalha. Além disso, ao contrário de outras categorias, este tipo de estabelecimento possui alvará de funcionamento de apenas dois anos.

Tenente Matos e soldado Caroline explicam que a tragédia causou mudanças na prevenção

 

Lei Kiss endureceu as regras de prevenção

O incêndio provocou mudanças na legislação do Rio Grande do Sul. Ainda naquele ano, em dezembro, a Assembleia Legislativa aprovou a chamada “Lei Kiss”, com normas de prevenção e combate a incêndios, a todos os imóveis não considerados como unifamiliares exclusivamente residenciais.

O comandante do Corpo de Bombeiros Militar de Dois Irmãos e Ivoti, 1º tenente Matos, e a soldado Caroline, explicam que as mudanças fortaleceram a prevenção de incêndios neste tipo de estabelecimento. “A Lei Kiss, como ficou conhecida, embasou várias resoluções técnicas e fazendo especificações. São vários decretos, cada um norteando diversas situações. São previstas saídas de emergências, larguras de portas, entre vários itens”, destaca Caroline.

Matos explica que o Corpo de Bombeiros realiza operações de fiscalização em casas noturnas. Segundo ele, quando são solicitadas mudanças em determinados itens, não há prazo para resolução. “Se algo não está conforme, o local é interditado e fica fechado até que tudo esteja dentro do que foi determinado”, explica o comandante. Além disso, ao contrário de outras categorias, este tipo de estabelecimento possui alvará de funcionamento de apenas dois anos.

 

Santa Maria (RS) – Homenagens às 242 vítimas do incêndio da Boate Kiss na Praça Saldanha Marinho, pela data de um ano da tragédia (Fernando Frazão/Agência Brasil)

JULGAMENTO ANULADO

Os quatro denunciados como réus pelo caso chegaram a ser condenados em dezembro de 2021, mas a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) anulou o júri após acolher parte dos recursos das defesas.

O julgamento, realizado em agosto de 2022, terminou com o placar de dois votos a um para reconhecer a anulação. Com isso, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da boate, Marcelo de Jesus, vocalista da banda, e Luciano Bonilha, auxiliar da banda, foram soltos no mesmo dia.

Atualmente, o processo está aguardando a conclusão de diligências para que a 2ª Vice-presidência do TJ-RS decida se admite os recursos movidos pela acusação e pelas defesas. Entre eles, estão pedidos de retomada do julgamento na 1ª Câmara Criminal e da prisão provisória dos réus. Se os recursos forem admitidos, eles seguirão para análise do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF).

Entre os principais apontamentos da defesa, que foram levados em conta pelos desembargadores, estão fatos como:

  • A escolha dos jurados ter sido feita depois de três sorteios, quando o rito estipula apenas um;
  • O juiz Orlando Faccini Neto ter conversado em particular com os jurados, sem a presença de representantes do Ministério Público ou dos advogados de defesa;
  • O magistrado ter questionado os jurados sobre questões ausentes do processo;
  • O silêncio dos réus, uma garantia constitucional, ter sido citado como argumento aos jurados pelo assistente de acusação;
  • O uso de uma maquete 3D da boate Kiss, anexada aos autos sem prazo suficiente para que as defesas a analisassem.

 

JORNALISTA COMEMOROU ANIVERSÁRIO NA NOITE ANTERIOR

Entre as 242 vítimas do incêndio estavam muitos universitários, que costumavam frequentar a Boate Kiss. Na noite anterior à tragédia, o jornalista Rodrigo Thiel comemorou seu aniversário no local. Atualmente com 28 anos, o ex-repórter do Diário reside em Novo Hamburgo, mas, na época, era aluno da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM.

Em 25 de janeiro, esteve na boate com dezenas de amigos e colegas dos cursos de Comunicação Social da UFSM, com quem festejava seus 18 anos. “No dia seguinte era para eu ter ido novamente. Lembro que, quando fiquei sabendo da tragédia, estava deitado na cama falando para uma amiga que estava cansado e não sairia. Nesse momento, meu primo chegou correndo, dizendo que havia acontecido um incêndio na Kiss”, recorda.

Rodrigo passou a acompanhar as notícias e, já no início da manhã, quando as notícias começavam a dar a dimensão do que havia acontecido, ligou para seus pais. “Eles me atenderam ainda com sono e eu falei que havia acontecendo algo muito ruim em Santa Maria, mas que eu tinha ficado em casa e estava bem”, conta. Uma das amigas de Rodrigo foi uma das vítimas, mas ele relata que, entre os mortos e feridos, conhecia mais de 50 pessoas.

 

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