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Onde ainda se fala com o coração: O Hunsrik resiste nas histórias, nas vozes das crianças e no orgulho de uma herança que não se cala

07/06/2025 - 16h02min

Crianças desenvolvem atividades nas salas de aula e, também, indo até a casa de moradores recitando versos, poesias e cantigas (FOTO: Cleiton Zimer / arquivo)

Santa Maria do Herval | É palavra por palavra que educadoras como Márcia Fenner e Solange Hamester Johann ajudam a reescrever o futuro de um idioma que resiste ao tempo. Com abordagens diferentes — uma marcada pelo afeto, versos e ludicidade; a outra voltada à técnica, escrita e reconhecimento oficial — ambas costuram, com dedicação, a continuidade de uma herança cultural inestimável.

A magia do conto falado

Márcia Fenner descobriu o poder do Hunsrik de forma quase intuitiva, durante a hora do conto com as crianças. “Elas entendiam e se envolviam muito mais quando a história era contada em Hunsrik. Muitas ainda chegam à escola com ele como língua materna”, conta a professora, que fez do idioma uma ponte entre a cultura local e o universo infantil.

Professora Márcia Fenner

Hoje, o Hunsrik aparece em apresentações escolares, no Kerb da comunidade, na Páscoa e no Natal, com versos, canções e teatrinhos criados pelas próprias crianças. “Algumas falam o Hunsrik em casa, outras nunca tinham contato e mesmo assim querem participar. Vai do interesse delas e do apoio da família”, explica.

O projeto cresceu no turno inverso, com um professor que ensaia apresentações com os interessados. Embora a escola ainda não tenha aulas formais da língua, a oralidade é presença constante. Para Márcia, o ponto crucial está na educação infantil: “É na creche que começa o vínculo escolar e onde também há maior risco de perder a língua. Precisamos estar atentos desde ali. É um desafio para o futuro”.

Língua registrada, escrita criada

Enquanto Márcia encanta pela oralidade, Solange Hamester Johann trabalha com o viés técnico e institucional do idioma. À frente do Projeto Hunsrik, com 21 anos de história, ela ajudou a criar uma forma escrita oficial reconhecida pela Sociedade Internacional de Linguística e registrada pela Unesco como HRX — o que colocou o Hunsrik no Ethnologue, catálogo mundial das línguas vivas.

Professora Solange

“Isso nos deu o status de língua germânica viva da América do Sul”, destaca Solange. Ela também atuou na criação de leis estaduais e municipais de valorização da língua e ampliou sua presença em projetos culturais, feiras, rádios e até no Google Tradutor.

O acervo já conta com 16 livros — como O Pequeno Príncipe (2014), um livro de receitas de batata (2016), o Novo Testamento bilíngue (2022), além da dublagem do filme “Jesus” e a gravação do Novo Testamento em áudio (2024). Um dicionário português-Hunsrik também foi lançado na Festa da Batata deste ano.

“Mas isso não é alemão errado”

Apesar dos avanços, Solange aponta a discriminação linguística como maior obstáculo. “Muitos acham que o Hunsrik é um alemão errado. Mas existem mais de 40 línguas germânicas, como o inglês. O nosso idioma tem mais de 1.500 anos de história e é falado em cinco continentes, sendo oficial em Luxemburgo”, afirma.

A desinformação, segundo ela, impede muitos de valorizarem a própria cultura. “Transmissão de conhecimento, gastronomia, identidade… tudo isso se perde se não mantivermos a língua viva. Chegamos até aqui com ela, e temos a responsabilidade de levá-la adiante.”

O elo invisível da identidade

Márcia e Solange atuam em frentes distintas, mas complementares. Enquanto uma preserva a língua nas vozes curiosas das crianças e nas tradições comunitárias, a outra institucionaliza, traduz, escreve e dá peso e reconhecimento ao idioma.

Em comum, um mesmo propósito: fazer do Hunsrik mais do que uma lembrança, mas uma presença viva no cotidiano. Santa Maria do Herval, com suas raízes germânicas, encontra nessas iniciativas um caminho para manter a alma do seu povo pulsando nas futuras gerações. Porque preservar uma língua é manter viva uma maneira única de ver o mundo.

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