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Língua mãe da região, o Hunsrik agora faz parte do Google Tradutor
O desafio da escrita é crucial para a perpetuação do idioma, que até então foi transmitido oralmente entre as gerações
Por Cleiton Zimer
Por quase dois séculos o Hunsrik se perpetuou exclusivamente através da fala, principalmente na Região Sul.
De raiz germânica, o idioma foi trazido pelos imigrantes alemães e se mantém vivo até hoje, sendo transmitido de geração em geração à base do ‘boca a boca’, por não existir uma escrita oficial ao alcance da população – até pouco tempo.
Mas há uma força que mantém este legado. E isso se torna evidente em alguns municípios, como Santa Maria do Herval, por exemplo, onde cerca 90% das famílias ainda seguem falando a língua mesmo sem ferramentas disponíveis para o ensino.
Flávio Vier, 71 anos, morador do bairro Vila Nova, lembra que aprendeu o português somente aos sete/oito anos, quando foi para a escola.
“Eramos 12 irmãos e crescemos falando Hunsrik.” Ele domina o português se necessário – até porque faz varejo e precisa se comunicar com todos os clientes –, mas no convívio do dia a dia usa a língua mãe.
Mas a realidade de Flávio não é a mesma das gerações que estão surgindo.
E, então, eis o grande desafio: gradualmente a fluência está diminuindo, principalmente na transição para as crianças. E até mesmo os adultos que sabem falar – praticamente na totalidade – não dispõem do conhecimento de escrita; o que preocupa e aumenta o risco de uma extinção gradual.
No entanto, graças a um trabalho incansável, desenvolvido em diversas fretes por membros das comunidades, o Hunsrik segue vivo e, agora, ganha um reforço importante: foi incluído na plataforma do Google Tradutor, junto a outras 110 línguas do mundo.
A conquista é celebrada por quem resguarda a cultura. E somente é possível graças a uma iniciativa que, em 2004, começou a criar um código de escrita.
O PROJETO HUNSRIK PLAT TAYTX
Liderado pela linguista alemã Ursula Wiesemann [falecida em 2022], em parceria com a Sociedade Internacional de Linguística (SIL), o Projeto Hunsrik Plat Taytx começou a ser implantado justamente em Santa Maria do Herval.
A professora aposentada Solange Hamester Johann, 67 anos, moradora da localidade de Boa Vista do Herval, faz parte do processo desde o início e, hoje, o coordena.
Um dos primeiros passos foi o registro na Ethnologue, órgão da Unesco que cataloga todas as línguas do planeta. A partir disso receberam o registro HRX, em dezembro de 2007, sendo o Hunsrik reconhecido como língua germânica viva da América do Sul.
Segunda língua mais falada do Brasil
Segundo Solange, é a segunda língua mais falada no Brasil. Por isso receberam o suporte de grandes entidades mundiais, inicialmente da Sociedade Internacional de Linguística – que já criou a escrita para mais de 2 mil povos e que hoje está trabalhando para outros 1.500 povos para a criação de escrita de suas línguas –, e posteriormente da União das Sociedades Bíblicas do Mundo para a tradução do Novo Testamento, publicado em novembro de 2022 na Feira do Livro de Porto Alegre.
No ano passado também foi lançada a dublagem do Filme Jesus – feita por moradores de Santa Maria do Herval – cuja entidade existe desde o ano de 1980 e que dublou o longa para 2 mil povos.
Agora estão tendo a parceria para a gravação de áudio do Novo Testamento, completo, para o final de 2024.
“Hoje nós estamos festejando a inclusão do nosso idioma no Google Tradutor”, destaca a pesquisadora.
Trabalho ininterrupto com foco na base
O Projeto Hunsrik Plat Taytx já segue ininterrupto por 20 anos, focando na base que são as crianças e professores. “Para ser incluído em sala de aula, é o nosso principal objetivo. Então, nossas publicações, a maioria delas, têm o objetivo de alcançar as crianças e sala de aula”, salienta Solange.
Além dos já citados, há diversas outras obras publicadas, como a tradução do livro “O Pequeno Príncipe”, um dicionário infantil e livro dos verbos.
“Nós, em qualquer continente onde chegarmos, podemos nos comunicar com facilidade”
Para Solange é crucial manter a identidade para herança dos descendentes. “Nós, em qualquer continente onde chegarmos, podemos nos comunicar com facilidade. Então, de tudo isso, o importante é manter viva a nossa cultura no Brasil e na América do Sul”.
Segundo ela, o Hunsrik é presente nos cinco continentes. E a língua oficial de Luxemburgo. Na Alemanha, é falado em quatro estados: Rheinland-Pfalz-Hunsrück, Saarlan, Hesse e Nord Rhein Westfalia. Assim como em estados da França, como Alsácia-Lorena, por exemplo.
Um compromisso que deve ser de todos, da casa até a escola
Márcia Fenner, 53 anos, é professora em Santa Maria do Herval e desenvolve atividades com as crianças para perpetuar a língua.
Ela mesma afirma que desconhece a escrita, assim como a maioria. Mas ensina o falar às crianças através de cantos e poemas.
“Eu fico feliz em saber que o Hunsrik está sendo reconhecido como língua. Temos um tesouro em nossas vidas, trazido pelas gerações passadas e que deve ser mantido a todo custo, pois tem um valor inestimável”.
“Temos um tesouro em nossas vidas, trazido pelas gerações passadas e que deve ser mantido a todo custo”
Ela diz que muitos lutaram pelo reconhecimento do idioma, cada um à sua maneira. “A professora Solange é uma delas. Sempre se dedicou pela língua escrita.”
Para ela, o Hunsrik deveria estar presente nos projetos de turno contrário. “Sei que nas escolas é complicado devido à grade curricular. Mas deveríamos ter, sem dúvida alguma, o contato nas escolas ou projetos.”
Apesar do trabalho constante e incansável, a educadora alerta que a cada ano fica menor a presença do Hunsrik. “Pode levar a língua ao desaparecimento com o tempo. Isso me preocupa.”
Márcia estende o compromisso para as famílias. “Os pais têm que perceber essa importância também e falar em casa com os filhos. Tem filho que não quer ouvir o pai falar, acha feio. Às vezes, eles até perguntam para os pais: o que você tá falando, é inglês?”, finaliza, destacando que o exemplo vem de casa.
Patrimônio cultural
O presidente da Câmara de Vereadores de Santa Maria do Herval, Félix Alles (PDT), encaminhou, recentemente, um projeto para que o Hunsrik se torne patrimônio cultural de Santa Maria do Herval. De acordo com ele, está na fase de análise jurídica.
Assim como em Herval, a língua é falada por diversas cidades da região, tanto nos Vales dos Sinos, do Caí, do Taquari e do Rio Pardo.
REPORTAGENS EM HUNSRIK
O Diário também desenvolve uma série de reportagens no interior, em Hunsrik. CONFIRA ALGUMAS MATÉRIAS EM VÍDEO: