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Diário da Terceira Idade: Dos vários começos à realização do sonho

16/05/2024 - 16h28min

Atualizada em 16/05/2024 - 16h31min

João exibe a imagem da Av. Sapiranga em 1975: “A nossa rua”, diz ele com orgulho e carinho pelo local onde ele construiu sua casa com as próprias mãos e criou os três filhos junto da esposa Lúcia (Foto: Nicole Pandolfo)

Este é um breve resumo das muitas histórias que João Führ tem para contar

Por Nicole Pandolfo

Dois Irmãos – João Führ, de 83 anos, procurou o interruptor atrás de um balcão e ligou as luzes do salão onde, até poucos meses atrás, funcionava o tradicional Mercado Führ. As prateleiras vazias e desalinhadas guardam a memória de um comércio próspero que recebeu clientes fiéis por quase 40 anos. De uma delas, João retirou um retrato que exibe a Av. Sapiranga no ano de 1975, uma estrada de chão beirada somente por vegetação, de onde se destacam as vigas de sustentação da construção da caixa d’água da Corsan: “A nossa rua”, ele disse, com orgulho e carinho pelo local onde ele construiu sua casa com as próprias mãos e criou os três filhos junto da esposa Lúcia.

“Eu comecei a vida 3 vezes”

Natural de Presidente Lucena, João deixou seu local de origem aos 20 anos para trabalhar em Novo Hamburgo e esta, segundo ele, foi a primeira das 3 vezes que ele diz ter dado início a sua vida. “A segunda, em 1966, eu trabalhava levando frutas e verduras pra Canoas, numa camionete F1 do sócio. Ele me deu um calote e eu fiquei sem nada.”

Em 1970, então recuperado financeiramente, João precisou mudar-se do bairro Travessão, em Dois Irmãos, onde morava com a esposa e os três filhos, para Santa Tecla, cuidar dos sogros que estavam com problemas de saúde. Em janeiro de 72, sua esposa sofreu uma séria hemorragia interna devido a uma gravidez ectópica, quando o óvulo fecundado não chega até o útero e se firma nas tubas uterinas. Depois de 14 dias à procura de médicos, finalmente um especialista realizou a cirurgia que salvou a vida de Lúcia: “Eu carreguei ela nos braços pra dentro do hospital. O médico me disse ‘Alemão, eu vou fazer de tudo, mas não garanto nada.’ E aí tu pensa… 3 crianças pequenas… Uma situação muito difícil”, ele recorda. Lúcia sobreviveu, mas o valor pago pelo procedimento médico desestruturou a saúde financeira da família mais uma vez.

João na porta de entrada do chalé, primeira casa da família

“Eu vou pra Dois Irmãos e não volto enquanto não tiver uma casa pra nós”

Decidido a deixar Santa Tecla, João voltou a Dois Irmãos em 1973. “Encontrei pessoas que não me ajudaram financeiramente, mas me deram apoio.” Na Av. Sapiranga, onde na época havia só um morador, João abrigou a família em uma casa alugada, com cinco meses de aluguel oferecidos pela proprietária que se compadeceu da situação da família. Ele lembra agradecido daqueles que o ajudaram de alguma forma. Uma destas pessoas foi Carlos Stoffel, dono da Padaria Stoffel: “Ele me disse: ‘Joãozinho passa lá em casa que eu tenho um negócio bom pra ti’. Eram latas de margarina com tampa de pressão, que vinham em 20 kg. ‘Tu carrega e vai pro interior vender.’” João carregou a camionete com 120 latas compradas a 2 cruzeiros e 50 centavos numa terça-feira. “Quando cheguei na Picada Café, na BR 116, no outro lado da ponte do Rio Cadeia eu tinha 4 latas, porque estavam um pouco amassadas. Eu ganhei 290 cruzeiros, a minha prestação era 271,50.”

No antigo mercado, João lembra da rotina de trabalho intensa na administração do comércio

“Agora é a vez de vocês”

Seu João fez uso dos 13 anos de experiência no comércio e em pouco tempo adquiriu o terreno onde ele vive até hoje. “Eu fiz das tripas coração, mas consegui pagar tudo, não precisei de dinheiro emprestado, mas tudo com gente me apoiando.” Construiu o primeiro chalé de madeira que abrigou a família e ainda segue ao lado da nova casa de alvenaria e do espaço que abrigou o mercado por tantos anos. Em 2000, surge a oportunidade de ocupar o terreno da família com um posto de gasolina: “Chamei os três filhos e disse ‘agora é a vez de vocês’”, Lembra João. “Eles sempre trabalharam comigo e eu tinha um desejo: que os meus filhos não precisassem começar a vida como eu comecei.”

“A gente tem que respeitar o tempo”

Sentado no antigo Mercado Führ, João se emociona ao falar da família e de como está lidando com a nova fase da vida, após a decisão de fechar o comércio. Um machucado na perna e consequente infecção impediu que ele continuasse a ajudar a filha e nora na loja e o volume de trabalho se tornou inviável para as duas. Em uma reunião de família, decidiu-se por fechar o mercado. Os filhos demonstraram preocupação com a maneira que seu João fosse encarar a grande mudança: “A minha cabeça está boa, eu vou te ser franco: essa situação de enchente aqui… um país tão rico, eu não queria passar por isso. A minha sorte é que eu tenho 3 filhos que sempre estão presente aqui. Até dois meses atrás, o 3 almoçavam aqui em casa. Eles faziam o rancho e a mãe fazia a comida. Se eu falasse alguma coisa de mal dos meus filhos, eu seria injusto”, ele diz coma voz embargada.

De trás do antigo caixa, ele observa as estantes vazias que simbolizam uma fase da vida que se encerrou, seguro de que venceu nos seus objetivos e certo de que ciclos se encerram: “Saudade existe, mas a gente tem que respeitar o tempo.”

No depósito, a placa do Mercado Führ é guardada com carinho

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