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Saúde do RS colapsada: O sofrimento de quem paga imposto e não recebe atendimento quando precisa
Após acidente de moto, morador de Santa Maria do Herval teve que esperar mais de 40 dias por cirurgia – que só foi feita via judicial
Por Cleiton Zimer
A crise da saúde pública no Rio Grande do Sul tem um retrato cristalino no drama vivido por um morador de Santa Maria do Herval. Enquanto hospitais enfrentam superlotação, falta de leitos e demora na transferência para unidades especializadas, pacientes e famílias arcam com o peso direto de um sistema que não consegue responder à demanda.
O pedreiro Jair Wagner, 50 anos, morador de Padre Eterno Ilges, passou mais de 40 dias aguardando uma cirurgia na coluna cervical após cair de moto no dia 12 de setembro. O quadro evoluiu para uma corrida contra o tempo, e contra a burocracia, até que a família buscou a Justiça para garantir o procedimento.
41 dias aguardando vaga com o quadro se agravando
Após a queda, Jair foi atendido no ambulatório local. Exames apontaram fratura na coluna cervical e, por exigir atendimento em neurologia, ele foi encaminhado ao Hospital Nossa Senhora das Graças, para onde foi transferido no dia 13.
Durante 41 dias, Jair permaneceu no hospital apenas com medicação para dor e exames, aguardando liberação de vaga para cirurgia em outra instituição de referência.
“O que eles fizeram lá: só medicaram para dor, e fizeram exame. E daí colocaram ele na lista dos leitos, no sistema, que puxa os pacientes para serem transferidos para outro hospital”, conta a esposa, Mariana Wagner.
Segundo ela, o nome chegou a constar para unidades em Canoas e Porto Alegre, mas sem resultado.
Sem saída
Diante do agravamento do quadro e sem previsão de cirurgia, a família procurou o poder público municipal. A afirmação de que nada mais poderia ser feito marcou o ponto de virada.
“Eu fui falar com o prefeito, com vereador. O prefeito disse que não podia mais fazer nada.”
O prefeito Gilnei Capeletti confirmou a situação e disse ter orientado a família a ingressar judicialmente:
“Realmente, o Nossa Senhora das Graças está um caos. Infelizmente é a nossa referência. Já tivemos casos parecidos. Essa família, sim, nos procurou, mas como é nossa referência, a partir do momento que é encaminhado para o hospital, o município não tem mais ação para tirar dali. Então é de responsabilidade do hospital. Eu mesmo os orientei a entrar via judicial, porque aí a Justiça determina. Eu não tenho como pegar ele e colocar num hospital particular e pagar. Se for via judicial, sim”, afirmou o prefeito, lamentando a situação que, segundo ele, escancara o momento da saúde pública gaúcha.
Poderia sofrer paralisia
Sem alternativa, a família recorreu à Justiça. “Porque eu já não podia mais ver: chegar naquele hospital, é gente morrendo, e não tem recurso nenhum.”
A cirurgia particular custaria cerca de R$ 86 mil. A família não teria como pagar. “Se fosse necessário, a gente teria que vender as coisas que conquistamos para poder tentar.” Gastaram, então, mais de R$ 6 mil com advogados para garantir o procedimento.
“Eu vi que ele iria ficar o ano inteiro lá e não seria chamado. Com o tempo o corpo iria paralisar, porque era perto da medula; então ele tinha que fazer essa cirurgia o quanto antes”, relatou.
Para a esposa, Jair estava só “tirando” o lugar dos outros pacientes que estavam na emergência esperando um leito no quarto. “Enquanto ele podia, se tivesse feito logo, estar em casa se recuperado.”
No fim ele ficou 41 dias no Nossa Senhora das Graças. Depois, em três dias estava tudo feito. “Como ganhamos na via judicial, fomos para uma unidade privada, no Hospital Regina. Ele entrou sextas, sábado de tarde fez cirurgia e domingo de tarde já ganhou alta.”
Jair segue em recuperação domiciliar, com necessidade de cuidados por três meses devido à colocação de parafusos e placas na coluna.
Mariana resume o drama:
“Isso é triste. Lamentável a saúde pública. Na verdade, era eu e Deus contra o tempo. Ter que gastar do teu dinheiro, por uma coisa que seria o teu direito… se o imposto estivesse sendo investido no lugar certo nada disso aconteceria.”
Mariana também descreveu um pouco do que viu nestes dias, resumindo-os em um verdadeiro terror no Nossa Senhora das Graças: “Lá não tem recursos. Eles jogam as pessoas ali. Alguns nem ganham leito, enquanto esperam por um simples cateterismo. Tinha um jovem de 37 anos que está prestes a perder o pé aguardando só para fazer um cateterismo. Eu questionei porque ele não colocava na justiça e ele me respondeu que não teria como, sequer, pagar o advogado.”
Ela contou que um senhor faleceu perto deles e as enfermeiras tiveram que reaproveitar tudo o que podiam para outra pessoa. “Higienizaram para usar em outros paciente. As coitadas das enfermeiras tinham que revirar as gavetas para achar luvas ou gazes. Já no Regina, parecia que a gente estava em um hotel, não no hospital.”
Mariana conta que se tivesse perdido na justiça, teria que procurar uma forma de fazer particular. “Mas não podia deixar a pessoa paralisar por uma simples negligência.”
Ela conta que pediu para prefeito e vereadores buscarem recursos para buscar por uma referência melhor para o município. “Quem não viu esse sofrimento, é porque ainda não precisou.”
Espera pode chegar a 7 anos
Mesmo após anúncios de medidas no início do ano para reduzir as filas no SUS, a situação pouco mudou no Rio Grande do Sul. Um levantamento recente mostra que 667.892 pessoas aguardam consulta com especialista no Estado — número semelhante ao de dezembro do ano passado.
A espera pode chegar a sete anos. As especialidades com maior demanda são oftalmologia (153.988 pedidos), ortopedia (80.363), reabilitação (43.040), cirurgia geral (38.701) e otorrinolaringologia (32.381).
Há casos de pacientes esperando desde 2021 por avaliação, situações em que o tempo médio supera 800 dias em áreas como bariátrica e TEA, e relatos de pessoas que não conseguem sequer apresentar exames a um médico meses após a realização.
O Estado firmou acordo para aplicar 12% da receita em saúde até 2030, de forma gradual. O Conselho Estadual de Saúde contesta e defende aplicação imediata. O governo afirma ter iniciado 30 mil consultas extras e prevê investir R$ 1,025 bilhão entre 2025 e 2026 para reduzir as filas.
