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23 anos depois, os detalhes do dia em que um avião fez um pouso de emergência em Picada Café
Picada Café – “Saaaai! Saaai! Sai que o bicho vai cair”, gritava um servidor público que capinava lírios ao lado da rua Vicente Prieto, em Joaneta, numa manhã ensolarada de 17 de dezembro de 1999, por volta das 10h30. Os gritos eram para Jair Heyllmann, repórter e entregador d’O Diário até hoje, que estava de carro saindo do Centro em direção a Joaneta. “Mas que bicho?”, perguntou Jair. “Tem um avião falhando, ele tá baixando e vai pousar aqui”, respondeu o servidor.
Ao olhar para o céu, Jair viu a pequena aeronave dando uma volta e se aproximando. Ele tirou o carro da estrada, colocou-o sobre o canteiro de flores e começou a se afastar do local para se proteger. Nisso, um motociclista vinha pela rua sem saber de nada. Tratava-se de Aloysio Bischoff, que foi vereador de Picada Café. Jair fez sinais com as mãos e gritou: “para, para, para!”. O local, no entanto, era próximo a uma curva e, ao fazê-la, Aloysio se deparou com o avião a sua frente prestes a pousar. Só deu tempo dele se abaixar e passar por baixo de uma das asas antes que a aeronave tocasse o solo.
Dentro do avião, um monomotor Tupi 711, estava o piloto e instrutor de voo, Fabricio Alexandre Capeletti, de 27 anos, morador de Novo Hamburgo, e o mecânico aeronáutico, Venir Carlos da Silva, de 49 anos, morador de Caxias do Sul. Ao fazer o pouso de emergência a cerca de 200 metros do Centro de Picada Café, Fabrício conseguiu manter o avião na Vicente Prieto praticamente sem incidentes. O único registrado foi quando uma das asas bateu em um poste quando o monomotor já estava quase parando.
Este fato marcante para todos que o vivenciaram há quase 23 anos, e que mudou a vida daqueles que estiveram diretamente envolvidos, é a reportagem de hoje na série “30 anos, 30 histórias”, que relembra as grandes notícias já veiculadas pelo jornal O Diário nestes 30 anos de existência.
Viagem a velório quase termina em tragédia
Passados quase 30 anos, O Diário conseguiu contato com Fabrício, que hoje mora em São Paulo e trabalha na Bahia como piloto agrícola. Ele contou em detalhes tudo o que aconteceu naquele dia que poderia ter terminado de forma trágica para ele, o mecânico, e muitas outras pessoas que seguiam suas rotinas no solo de Picada Café. O avião pousou quando vinha de Manoel Ribas, no Paraná, com destino a Novo Hamburgo. Mas a viagem de ida ao Paraná tinha como destino um velório.
Em 1999, Fabrício, que é natural de Campo Bom, ainda morava em Novo Hamburgo, onde tinha como base o aeroclube. Era piloto há apenas dois anos e trabalhava puxando faixas aéreas de propaganda e como instrutor de voo. Porém, naquela semana, um trabalho atípico surgiu. O Comandante Alceu Mário Feijó Filho, progênito do famoso fotojornalista Alceu Feijó, pediu que Fabrício levasse duas conhecidas para o velório do pai delas em Maringá, no Paraná. Seria um simples trabalho de táxi aéreo, ida e volta, e nada além disso. Porém, o avião não completou a viagem inicial, tampouco de retorno. “Eu não conhecia aquele avião, era de um amigo do Comandante Feijó que me pediu esse favor. Então decolamos normal em Novo Hamburgo. Era um dia tranquilo, tudo normal. Mas já no Paraná começou uma pane hidráulica, baixa pressão de óleo e decidi fazer um pouso em Manoel Ribas”, conta Fabrício.
As duas irmãs seguiram de táxi por mais duas horas até Maringá. Fabrício ficou no local e contatou o proprietário do avião informando sobre os problemas. Foram três dias de espera até a chegada de um mecânico, que avaliou a aeronave e deu o “ok” para levantar voo. “Após o conserto, decolamos até Campo Mourão para abastecer. Por sorte, eu tinha todos os comprovantes que mostravam que o avião estava com combustível suficiente para retornar a Novo Hamburgo”, relembra.
Emergência em Picada Café
Há 7.500 pés de altura, cerca de 2.286 metros acima do solo, Fabrício e Venir voltavam do Paraná e estavam há poucos minutos de seu destino final, Novo Hamburgo. Sobrevoando Picada Café, assim como havia acontecido na ida, uma pane acometeu o avião. Só que dessa vez, de forma mais grave do que antes. O motor desligou e a aeronave começou a perder altitude, Venir deu um pulo em sua poltrona e tentou desesperadamente religar o monomotor. Sem sucesso. Fabricio buscou o socorro ao Comandante Feijó, que estava em Novo Hamburgo, mas não havia tempo para chegar até o Vale do Sinos.
O Tupi 711 transformou-se em um planador e começou a perder força e altura. A vida dos dois tripulantes passava a correr perigo em uma queda que era cada vez mais inevitável. “Foi tudo novo e muito rápido, mas consegui manter a calma e decidi que iria pousar. Vi uma estrada e defini um ponto e quando se toma essa decisão, não se volta atrás”, conta o piloto. Fabricio já estava decidido e havia traçado um plano de pouso para salvar suas vidas e também daqueles que estavam em solo. O mecânico, no entanto, ainda tentava a todo custo religar o motor. “Eu disse pra ele se acalmar e se segurar porque eu já tinha tomado a minha decisão e qualquer coisa que viesse a atrapalhar isso poderia causar uma tragédia”, acrescenta.
“Na hora que pousei, não senti nada. Mas quando cheguei em casa e peguei minha filha no colo, que tinha apenas dois anos, eu a abracei e chorei muito pensando no que poderia ter acontecido”
Instantes depois, o monomotor sobrevoou a copa de um pinheiro araucária, passou raspando sobre um motociclista e tocou o solo da rua Vicente Prieto em segurança. O avião ainda andou alguns metros antes de parar e, numa curva, bateu a asa direita em um poste de energia. A aterrisagem foi considerada um sucesso e ninguém se feriu. Em pouco tempo, uma multidão se juntou no local para testemunhar o dia em que a Vicente Prieto tornou-se uma pista de aeroporto, fato que nunca mais se repetiu.
O desfecho
Ao descerem da aeronave, Venir parabenizou Fabricio, que diz não ter sentido nada no momento. Talvez pela adrenalina do ato que acabara de fazer, ou até mesmo por ainda não ter se dado conta de que suas vidas poderiam ter acabado ali, Fabricio manteve-se calmo como se tivesse realizado um pouso comum. O delegado da Polícia Civil de Nova Petrópolis da época, João Mauro Guimarães Pinto, foi ao local e constatou que nada de ilícito havia na aeronave.
O avião foi removido até o pátio da Chapeação e Pintura Porão, onde foram desmontadas suas asas para que um caminhão o transportasse até Novo Hamburgo. Piloto e mecânico seguiram seus caminhos por terra e finalmente chegaram em suas casas. “Na hora que pousei, não senti nada. Mas quando cheguei em casa e peguei minha filha no colo, que tinha apenas dois anos, eu a abracei e chorei muito pensando no que poderia ter acontecido. Minha esposa também me abraçou, chorou e perguntou se era aquilo mesmo que eu queria para a minha vida, mas ser piloto sempre foi meu sonho e nunca quis voltar atrás”, relembra.
O avião passou por uma perícia, mas o resultado nunca chegou até Fabrício. “O dono da aeronave quis dizer que era minha culpa por não ter combustível suficiente, mas eu tinha. Quando um piloto morre, ele leva a verdade com ele e muitas vezes leva a culpa, mas quando sobrevive, como foi no meu caso, a gente consegue se defender”, disse. Ele nunca mais teve contato com aquele Tupi 711 ou com seu proprietário.
Moto nunca mais
Aloysio, o motociclista, conta que pilotava na Vicente Prieto no sentido contrário do avião e não viu a aeronave. “Deus fez a natureza perfeita, deixou um recuo naquele lugar para eu conseguir passar sem se encostar. Isso que o avião vinha com alta velocidade, só senti que a asa passou muito perto de mim. Estou vivo porque Deus estava lá me protegendo”, conta.
O fato de Aloysio quase se envolver em um acidente de trânsito com um avião, colocou um fim em seus dias de motociclista. “Depois desse susto, nunca mais andei de moto, foi a despedida com chave de ouro”, afirma. Ele relembra que o monomotor tinha cortado uma parte da asa quando passou por meio de dois postes de luz, fazendo com que ele conseguisse passar sem encostar.
“Estou vivo porque Deus estava lá me protegendo”
“A moto já não era mais minha, tinha vendido pro meu sócio na época, e precisa ir pra Joaneta. Meu carro estava na lavagem e meu sócio me deu a chave e disse ‘tira a vontade de andar de moto’. Sem falar duas vezes me mandei, era pra ser assim. Se tivesse de carro não teria dado lugar para passar”, finaliza.
Dias atuais
Fabrício deixou o Rio Grande do Sul três anos depois, em 2002. Desde então vive em Itu, São Paulo. Lá é onde mora e passa seis meses por ano com a esposa e um filho pequeno. Tem seu próprio avião monomotor, fabricado na Alemanha, o qual usa para viajar pelo Brasil. Os outros seis meses, passa na Bahia, onde trabalha como piloto agrícola. Sua filha mais velha, que tinha dois anos na época ainda vive em Novo Hamburgo, assim como outros familiares de Fabricio, que tem também duas filhas em Campinas/SP.
“Quando um piloto morre, ele leva a verdade com ele e muitas vezes leva a culpa, mas quando sobrevive, como foi no meu caso, a gente consegue se defender
Aquele dia marcante, em Picada Café, ele trata como um renascimento, pois sua vida poderia ter acabado ali, e usa a experiência como ensinamento a outros pilotos mais jovens. Com mais de 8 mil horas de voo acumuladas durante a carreira, acredita que, se algo assim acontecesse hoje no mesmo local, ele teria ainda mais calma e tranquilidade para saber o que fazer. No entanto, o crescimento populacional poderia dificultar um pouso de emergência.
“Foi um prazer recontar essa história e relembrar esses momentos. É uma história que eu sempre contei pros filhos, pros amigos e pra família. Com certeza vou colocar essas reportagens em um quadro e pendurar na minha sala, pois significa muito para mim”, finaliza Fabrício, hoje com 50 anos.