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Mãe descobre vocação ao buscar bem-estar para o filho autista
ESTÂNCIA VELHA
Geison Concencia
Ao longo da história da humanidade, poucos vínculos se mostraram tão resilientes e transformadores quanto a relação entre mãe e filho. Trata-se de um laço que vai além do biológico — é também emocional, ético e filosófico —, manifestando-se como uma poderosa força de superação diante das adversidades. A ciência moderna e as reflexões filosóficas contemporâneas convergem em afirmar: o amor materno, quando aliado à razão e ao cuidado, é capaz de gerar soluções extraordinárias para problemas complexos, mesmo quando faltam lógica ou recursos técnicos.
Um exemplo concreto dessa capacidade de superação é a história de Joice Halmenschlager, 43 anos. Sua vida mudou completamente quando um dos filhos, Pedro, foi diagnosticado com autismo de grau 3. Há nove anos, Joice deixou uma carreira estável no comércio para se dedicar integralmente à família. No meio das transformações da rotina e motivada pelo amor ao filho, ela descobriu uma nova vocação: cortar cabelo de pessoas com necessidades especiais.
Uma nova paixão
Joice relata que o início foi difícil. Acostumada a trabalhar fora, sentia falta de uma ocupação que lhe desse rotina e propósito. Ao mesmo tempo, precisava estar presente para cuidar de Pedro, que demandava atenção especializada. A ida ao barbeiro se tornava um desafio: o menino não conseguia esperar muito tempo e, quando não era atendido logo, ficava inquieto. “O Pedro não conseguia esperar. Assim que chegávamos ao barbeiro, ele já precisava ser atendido. Se não fosse, começava a mexer nas coisas”, relembra.
O ponto de virada veio numa conversa com uma amiga, também mãe de uma criança autista, que contou que só conseguia cortar o cabelo do filho enquanto ele dormia — o barulho da máquina o assustava demais. Esse relato acendeu um sinal em Joice. “Saí da escola com aquele sentimento: ‘ele deita cabeludo e acorda com o cabelo curto’”, conta.
Naquele mesmo dia, tomou uma decisão. “Enquanto conversava com a minha amiga, pensei: ‘vou procurar escolas de barbearia, nem que seja só para cortar o cabelo da minha família’. Quando cheguei em casa, liguei para várias. Foi como se Deus dissesse: ‘é isso que tu precisa fazer’”.
O custo e a superação
Apesar da motivação, Joice esbarrou no valor alto do curso, que naquele momento era inviável para a família. Mas, ao apresentar seu propósito à escola de barbearia, recebeu apoio imediato. “Quando contei minha história, eles disseram que iriam me ajudar a realizar esse sonho. Falaram: ‘vamos dar um jeito, tu vai conseguir fazer, nem que seja parcelado’”, lembra.
Mesmo matriculada, ela ainda sentia insegurança. Estava com 40 anos e começava algo totalmente novo, fora da sua zona de conforto. “O curso era à noite. De manhã, acompanhava o Pedro nas terapias; à tarde, cuidava da casa e dos filhos; à noite, ia para a escola. Quando meu marido chegava, a gente trocava os papéis. Meu marido sempre me apoiou muito”, conta.
Outro obstáculo foi o medo de machucar alguém com a navalha. Mas, com dedicação diária, Joice venceu o receio. “A mulher consegue tudo. Basta colocar a mão e querer fazer.”
Atendimento personalizado
Depois de formada, Joice começou a cortar o cabelo do próprio filho e, aos poucos, passou a ser procurada por outras famílias com filhos atípicos. Para cada atendimento, ela elabora um questionário que busca entender as especificidades da criança: diagnóstico, preferências, sensibilidades. “Eu chego com algo que prende a atenção da criança. Algumas gostam de números, outras de letras, quebra-cabeças, dinossauros. Levo esse objeto para encantar, e assim ela deixa eu cortar”, explica.
Como a maioria dos autistas tem sensibilidade ao som da máquina, Joice opta por usar a tesoura. E, se a criança não tolera a capa protetora, ela adapta. “A pele deles é sensível. Quando o cabelo cai, a gente segura um pouco com a mão e usa o espanador logo em seguida”, detalha.
Na condição de mãe de autista, ela compreende com mais profundidade o cotidiano das famílias que atende. “Quando entro na casa, quero passar segurança. Mostrar que estou junto com eles, que não precisam ter vergonha nem receio. Eu sei como é. Estou preparada.”
Reconhecimento verdadeiro
Joice se emociona com o carinho das crianças. “Quando chego e escuto: ‘a tia Joice chegou’, quando abro a mala cheia de coisas que eles gostam, quando consigo que me abracem, mesmo com toda a dificuldade do corte… esse abraço é minha maior recompensa”, afirma. “Para muitos autistas, dar um abraço é difícil. Então, quando isso acontece, tudo valeu a pena.”
Ela também aprendeu a entender melhor o próprio filho ao conviver com outras crianças autistas. Pedro não é verbal, mas, ao ouvir os relatos das crianças que conseguem se expressar, ela associa os sentimentos delas ao que o filho pode estar sentindo. “As outras crianças me ajudam a entender o que o Pedro talvez sinta, mas não consegue dizer.”
Com afeto, empatia e iniciativa, Joice transformou a dificuldade da maternidade atípica em missão e ferramenta de inclusão. Sua história é um lembrete poderoso de que o cuidado, quando aliado à ação, tem o poder de transformar vidas — inclusive a própria.